quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Caminhos escuros, voando para a morte.

Bem vindos de volta, meus caros!

Hoje é dia de mais uma lenda! Uma que mostra o que acontece quando se desafia a ira de deuses, por mais astucioso que seja, assim como explica a origem do nome de uma das ilhas gregas.

Espero que se divirtam e comentem, caso tenham algo para expressar!


O sol estava para tocar o mar do oeste e Minos, rei da cidade de Creta, se preparava para iniciar sua ceia de frutas secas, pão e vinho, quando escutou um enorme rebuliço na praça do palácio. Chegando em uma das sacadas, viu adentrar pelos portões o último homem que esperava estar vivo, carregando algo que fez seu sangue gelar de terror e ferver de ódio, no mesmo instante.
Teseu, o semideus, entrou na cidadela mancando, devido aos seus inúmeros ferimentos, e com o corpo sujo pela lama do labirinto, mas, mesmo assim, se mostrando uma figura heróica e imponente, abrindo espaço na multidão de curiosos, que se formou rapidamente para recebê-lo.
Em cada mão, carregava as causas de tanta comoção e tanto respeito, independentemente de sua forma magra e fraca, pelos dias passados com fome e sede. Na mão esquerda, segurava um novelo de seda, tão brilhante quanto no dia em que lhe foi entregue, e na direita, levava a enorme cabeça de um touro.
Muitos perguntavam, “Aquele é Teseu?” ou “Aquela cabeça é o que estou pensando?”, e, com respostas incrédulas, vinham outros dizendo, “Não pode ser, por mais que ele seja filho de Zeus.” e “O monstro não pode estar morto, é impossível.”.
No entanto, nenhum dos argumentos eram justificáveis, pois Teseu era o único herói com coragem para portar o símbolo de Zeus e Athena em seu capacete, algo que seria um enorme ato de prepotência, caso o usuário não fosse realmente abençoado, simultaneamente, pelo deus dos raios e a deusa da sabedoria e coragem, e todos estavam vendo o troféu ensanguentado. A cabeça era a prova final de que aquele homem cumprira com sua missão.
A cabeça lembrava muito a de um touro negro, porém os olhos arregalados eram como dois rubis, os chifres feitos da mais pura prata e os dentes, feitos para consumir carne humana, eram pontiagudos, e rolou com um som úmido até bater nas portas do palácio, quando Teseu a lançou, exclamando:
- Rei Minos! A tarefa está cumprida! O monstro está morto, que cessem os terríveis sacrifícios e que minha tropa seja libertada.
Ao escutar tais exigências, o povo rompeu em aplausos e gritos de alegria, pois os sacrifícios mencionados eram o envio, a cada estação, de sete jovens, homens ou mulheres virgens, para o labirinto, onde seriam perseguidos e consumidos pelo terrível Minotauro, uma besta com corpo de gigante e cabeça de touro.
Sendo um rei justo, por mais frias que algumas de suas ações tenham sido, Minos não pôde negar o herói, que havia feito sua parte do acordo, e mandou que os homens do Rei Egeu, pai adotivo de Teseu e governante do reino inimigo, fossem soltos.
O semideus, antes de partir para casa, queimou o novelo em homenagem à Athena, sem saber de sua participação na aventura, e entregou a cabeça da fera para o povo fazer seu próprio sacrifício final à Poseidon, pois em seu nome eram mortos os jovens.
Uma enorme festividade foi preparada, a qual teve início com o navio de Teseu zarpando e com a queima da cabeça numa pira feita de troncos recolhidos na praia e ervas aromáticas, em sacrifício e prece ao deus do mar. Porém, este não chegou a ouvir a voz do povo, pois estava vindo para terra firme.
Minos, desde que libertara seus prisioneiros e se despedira de Teseu, se trancou em seus aposentos, onde deu vazão, em primeira instância, à sua raiva, seguida, quando já não aguentava mais esmurrar, quebrar e gritar, da mais inconsolável tristeza, uma vez que o reino de Creta guardava um segredo terrível em seu palácio, pois o rei perdera, naquele dia, seu primeiro e único filho, gerado numa relação tripla entre ele, sua esposa e o deus dos oceanos e terremotos.
Este último, se materializando num canto do quarto, encontrou Minos caído no chão, aos prantos e soluços. Se aproximando com passos firmes, agarrou o velho pelos ombros e o colocou em pé, questionando de forma rude:
- O que aconteceu aqui? Onde está nosso filho?
Levando alguns instantes para perceber que o cheiro de algas e sal vinha de dentro dos aposentos, Minos apenas meneou a cabeça, apontando para a luz da pira que ardia no pátio.
- Quem aniquilou o Minotauro? Ele era um guerreiro sem igual!
- E foi um homem ainda mais único que o venceu. – Finalmente respondeu o rei – Teseu, filho de seu irmão caçula, Zeus, e criado pelo rei Egeu, nos atacou, pois estamos em guerra, mas seu navio foi capturado e sua tripulação condenada a ser sacrificada a você, no labirinto.
- Mas eu não recebi nenhum sacrifício! – Esbravejou o deus, borrifando Minos com água marinha que ainda se encontrava presa em sua longa barba – Não é possível que nosso filho não foi capaz de matar um guerreiro sequer, a não ser que o batalhão era formado por heróis.
- Não, apenas Teseu era herói, e, por isso, se candidatou a entrar sozinho no labirinto, para enfrentar o horror que lá morava. Se vencesse o Minotauro, eu deveria soltar toda sua tripulação, que voltaria em derrota para seu reino, mas, caso não retornasse até que a lua estivesse completamente invisível no céu, eu poderia sacrificar todos os outros prisioneiros e queimar seu navio.
A expressão de ira de Poseidon teria feito o sangue de Minos esfriar, caso ele já não estivesse, novamente, com a visão turva pelas lágrimas. Não fazia sentido para o povo comum ele amar uma criatura como aquela, mas a linhagem falara sempre mais alto e, com a morte de sua esposa no parto, o Minotauro seria sempre o único sucessor do trono de Creta.
Ambos não sabiam como Teseu voltara com vida, pois, mesmo sendo um guerreiro vigoroso, com sangue divino e conseguisse matar a fera, ele nunca deveria ter saído do labirinto, uma vez que foi criado pelo maior arquiteto do mundo, Dédalo.
Estavam debatendo por mais de uma hora, tentando compreender como era possível alguém vencer a prisão de corredores escuros, quando uma brisa marinha entrou pela janela, carregando uma voz suave:
- Acho que sei a resposta do seu dilema, meu amo e senhor.
Poseidon conhecia aquele tom, estava sempre rodeado das doces vozes das nereidas, suas filhas e ninfas do mar, e, sem se surpreender, viu o vento se concentrar na sua frente, tomando a forma de uma maravilhosa mulher, de cabelos azuis e pele ligeiramente esverdeada, que se materializou.
- Minha filha. – Disse o deus, num tom infinitamente mais carinhoso – O que sabe dessa história?
- Meu pai, eu estava nadando próxima à costa quando vi um guerreiro muito belo seguindo em direção ao templo de Athena. Por curiosidade, e um pouco de luxúria, o segui e vi que ele queimou um belíssimo novelo de seda, agradecendo a ajuda que recebera de Dédalo.
Escutando, irado o suficiente para fazer as bases do palácio tremerem, o deus dos terremotos se virou para o rei, que mimicava sua fúria, e o comandou que a morte do Minotauro fosse vingada. Minos, concordando sem pestanejar, viu os dois imortais desaparecendo e chamou o chefe de sua guarda.
Na primeira luz do dia seguinte, Dédalo, um velho de barba e cabelos brancos, mas olhos castanhos astutos como uma raposa e inteligente como uma coruja, foi arrastado até a presença do rei, que não fez cerimônias antes de acusar:
- Você, Dédalo, arquiteto e artesão, é culpado pela morte de meu filho!
- Seu filho? – Perguntou o réu, sem ter ideia do que estava acontecendo, pois nunca ferira outro humano em toda sua vida.
- Meu filho – descendo o tom para um nível ameaçador – era ninguém menos que o rei do seu labirinto e está morto por sua causa.
Dédalo, engolindo em seco e lambendo os lábios rapidamente, para deixar sua voz mais firme e esconder o medo, argumentou:
- Não posso ser acusado disso, senhor, não entreguei arma alguma a Teseu, nem o ensinei a chegar no centro do labirinto. Isso posso garantir.
- Mas ele queimou um novelo para Athena, em agradecimento à sua ajuda. Vai negar que o ajudou?
- Não. – Decidindo que a verdade seria sua melhor aliada, pois escutara inúmeras histórias do senso de justiça de Minos. – Eu realmente o ajudei com o novelo, pois o encontrei após orar para Athena, em seu templo, e naquela noite sonhei com o semideus e ele portava tal artefato. Nunca o havia conhecido, mas no dia seguinte o encontrei saindo dos portões de Creta, então lhe entreguei a seda e ele seguiu seu caminho, apenas dizendo quem era e que tinha pressa para salvar seus companheiros.
O rei viu a verdade nos olhos do velho e lhe contou o que se passara com Teseu, sobre o acordo feito e como ele retornara vitorioso com a cabeça do Minotauro, de modo que Minos não teve escolha senão deixá-lo partir.
- O senhor é um rei justo. Muitos exigiriam vingança pela morte de um filho, ignorando acordos e juras.
- Essa é a questão. – Respondeu Minos, com um sorriso malicioso, como um gato que encurrala sua presa – A vingança foi exigida, por Poseidon, o outro pai da fera. – Vendo a expressão aterrorizada de Dédalo, incluiu, numa versão jocosa de alguém que reconforta – Mas eu sou um monarca justo, isso é verdade, então você não será condenado à morte, apenas Ícaro, seu filho.
Dédalo caiu de joelhos com a notícia, mas, antes que pudesse pedir misericórdia, uma coruja de penas cor de bronze voou para dentro do salão, pairando próxima ao arquiteto e mudando sua forma. Num segundo, o velho era ajudado a se levantar por uma mulher alta e esbelta, de cabelos e olhos com as mesmas cores da coruja, e trajando uma armadura completa de amazona, com seu enorme escudo redondo e lança prateada.
A aura que rodeava a mulher denunciava sua natureza, mas foi seu tom de voz autoritário que confirmou sua divindade:
- Como ousa chamar de justa, uma punição de um jovem que não está envolvido em crime algum? Fui eu quem deixou o novelo de seda infinita para ser encontrado e eu quem fez este homem sonhar com um herói que ele nunca havia vislumbrado.
- Minha senhora Athena. – Respondeu Minos, mostrando coragem em sua voz firme e respeito em seu tom – A punição não é para o jovem, como pensas, mas para o pai! Para que ele saiba e sinta o sofrimento que eu sinto. Um filho por um filho. Uma vez que seria injusto eu romper meu acordo com Teseu.
- Teseu é filho de Zeus e, por isso, é meu meio-irmão e agraciado por mim, que preso a bondade e a inteligência. Este homem foi apenas um meio de apoiar um herói, na caçada a uma besta. O proíbo de punir Dédalo.
- Você não tem autoridade para proibir isso, minha cara sobrinha. – Disse Poseidon, surgindo de uma sombra no salão. – Minos está executando uma exigência minha, pois é o único que partilha de minha dor, pela perda de nosso filho.
- Se fala tanto de justiça nessa cidade, mas onde ela está, na morte de um menino? Não se pode negar que o Minotauro era um guerreiro exemplar, certo?
- Sem dúvida. – Se intrometeu Minos, sentindo orgulho da criatura que gerara.
- E que o auxílio dado por Dédalo, nada influenciou no combate. Pois não lhe forneceu armas ou estratégias.
- Sim, mas...
O rei não terminou sua frase, pois o tridente de Poseidon pousou ameaçadoramente em sua garganta.
- Não diga mais nada, seu estúpido, não pode competir com a inteligência de Athena, nascida da própria cabeça de Zeus.  – e, se virando para a deusa – Onde quer chegar, com esses argumentos?
- Quero que esse mortal não sofra nenhuma injustiça.
- Muito bem. Não iremos executar Ícaro. – o suspiro do arquiteto foi audível, mas interrompido pelo próximo argumento – Ele será trancado no labirinto, pois, caso não tivesse interferido, Teseu não teria escapado e nossa vingança seria concretizada.
- Senhor, - pediu Dédalo, numa voz baixa e triste – condenar meu filho ao labirinto é o mesmo que executá-lo, mas de uma forma mais sofrida e lenta, pela fome, sede ou até pela insanidade. Compreendo seu ponto de vista, por isso te suplico um favor.
- E o que seria? Mas, já o aviso que não irei poupar seu filho impunemente.
Os olhos de Dédalo encontraram os de Poseidon, em desafio.
- Desejo ser trancado no labirinto com meu filho. Pois se é uma chance de sobrevivência que ele merece, como mereceu o Minotauro, eu serei essa chance. Não conheço o labirinto de cor, mas tenho algum conhecimento que nos daria uma chance de fugir.
- Estou de acordo. – aceitou o deus – Desde que respeite duas condições. Athena não lhe dará artefato ou magia para que se guie no interior da construção e você deverá me dar sua palavra de honra que perambulará pelos corredores por 1 dia inteiro, antes de começar a buscar a saída.
- Dédalo. – Começou a deusa, mas os olhos bravos e o brilho da coragem fizeram com que a deusa se calasse.
- Muito obrigado por sua ajuda, minha divina senhora Athena. Sem seu apoio meu filho estaria morto antes do anoitecer e, sem seus argumentos, eu não poderia socorrê-lo.
- Sua coragem e sabedoria merecem recompensas e reconhecimento, meu caro Dédalo, estarei ao seu lado no momento que adentrar na fortaleza de corredores.
Nisso, os deuses se desmaterializaram e Minos condenou:
- Dédalo, vá para casa agora, aproveite sua possível última noite de sono em liberdade. Esteja na entrada do labirinto, com seu filho, amanhã, na primeira luz, trajando apenas as roupas do corpo.
Assim fez o arquiteto, voltou para seu lar, conversou com seu filho, um jovem esbelto de cabelos loiros encaracolados que bravamente aceitou a definição dos deuses, e estudou todos os mapas e planos que havia feito para a construção, até o momento de partir.
Quando a primeira luz emergiu de trás da imensa construção, que parecia uma enorme caixa, sem adornos nas paredes além das linhas retas onde os gigantescos blocos de pedra cinza se encaixavam, o rei Minos, que aguardava perante as imponentes portas de madeira negra, viu surgir, na curva da estrada, Dédalo e seu filho, mais alto que o pai, ambos trajando túnicas simples e caminhando eretos, sem fraquejar.
Enquanto se aproximavam, a figura de Athena se materializou ao lado dos dois, para acompanhá-los nos últimos metros e dar sua última recomendação, longe dos ouvidos do rei:
- Nada temam, não existe nenhum outro monstro no interior do labirinto.
- O labirinto por si só, já é um monstro, minha senhora. – Respondeu o arquiteto – Foi projetado para isso.
- Sim, mas confio em sua sabedoria, Dédalo. Tenha em mente apenas que a entrada não é a única saída, e que a natureza tem as respostas para as mais diferentes questões.
Dédalo absorveu o comentário de Athena, que sorriu, se transformou em coruja e voou para uma árvore próxima.
Minos, sem desconfiar do que havia se passado, pediu para que um de seus guardas revistassem os dois condenados e, não encontrando nada escondido, lhes entregou uma tocha, um incenso e uma pequena faca de sílex, dizendo:
- Vão agora, com a proteção de uma divindade e a ira de outra. O incenso será aceso assim que entrarem e irá queimar por um dia inteiro, lhes mostrando quando poderão buscar, novamente, estas portas e, caso pereçam no interior, estejam com suas almas purificadas, como um sacrifício deve estar.
Ícaro olhou a faca de sílex e desafiou o rei:
- Vai nos dar utensílios de apoio?
- Não seja tolo, jovem bravo. A faca, sendo de sílex, não poderá marcar as paredes ou piso por mais que alguns metros. Ela é um presente de misericórdia, em reconhecimento ao amor que seu pai demonstrou por você. Quando a sede ou a fome forem mais fortes que a vontade de viver, ele poderá se sacrificar e entregar a você sua carne e sangue, como nutrição, ou, como alternativa, acabar com o sofrimento de sua prole, de modo mais rápido e menos doloroso.
Os olhos azuis do menino se encheram de ódio e apenas o toque de seu pai, em seu ombro, o impediram de atacar, algo que seria desastroso e infrutífero.
Sem dizer uma só palavra, mas com o olhar frio e calculista, Dédalo permitiu que um dos soldados acendesse a tocha e o incenso e, com um aceno de cabeça para a coruja, guiou seu filho para dentro do labirinto, escutando as pesadas portas se fecharem às suas costas e sendo cobertos pelo frio e pela escuridão dos, quase infinitos, corredores.
Os corredores eram escuros e úmidos, o silêncio chegava a ser opressivo, quase audível, parecia que a luz da tocha não possuía força para vencer mais do que poucos metros de breu. O som de cada passo ecoava, como o soar de gongos, e o ar, após a primeira curva, era tão estático e viciado com o odor das rochas mesclado com o fedor pungente dos inúmeros sacrifícios que morreram ali, em dias passados, suas entranhas se esvaziando assim que viam o terrível Minotauro surgir das sombras, que parecia uma barreira sólida confundindo a mente em poucos segundos, com a dúvida se era o cheiro que sentiam ou o gosto.
Ícaro tentara puxar conversa com seu pai diversas vezes, mas Dédalo não havia liberado uma só palavra. Sua mente pensava apenas em todos os mapas que estudara noite a dentro, assim como nas últimas palavras de Athena, “A entrada não é a única saída”.
O arquiteto achava que aquilo não fazia sentindo, ele mesmo desenhara o labirinto para ser inexpugnável, com paredes largas, que não poderiam ser quebradas nem pela própria besta, afastadas uma das outras, para que não fosse possível escalar, e, caso conseguissem subir nas paredes altas, com quase quatro metros, um teto, espesso o suficiente para impedir até a passagem do calor externo, seria a única coisa que encontrariam.
Pelo visto, estava murmurando essas considerações, pois seu filho comentou:
- Não é por acaso que o Minotauro era um monstro tão terrível, viver tantos anos sem ver o sol, sentir as carícias do vento ou o frescor da chuva.
- O que foi que disse? – Perguntou Dédalo, voltando para a realidade.
- Apenas tive um lapso de pena pela besta, meu pai, pois eu sempre fui apaixonado pelo céu, o ar e, principalmente, o sol. Não sei quanto tempo aguentarei aqui dentro, nessa masmorra.
Mas, ao se virar para olhar o velho, viu sua expressão de surpresa e, estranhamente, de alegria. Uma gargalhada surgiu incontrolável, dos lábios do arquiteto, que, sob a luz da tocha, assumiu feições assustadoras.
- Você tem razão, Ícaro! É isso!
- Isso o que? Que vamos aguentar pouco aqui? Pelo visto, a sanidade do senhor menos que a minha.
- Não é nada disso. – Acelerando o passo, quase correndo, deixando rapaz e tocha para trás, e roçando uma das mãos na parede – O Minotauro era filho do rei de Creta e, por isso, recebia regalias.
- Regalias? – Perguntou Ícaro, com desprezo, e alcançando facilmente seu pai, que parava em cada bifurcação e olhava intensamente o incenso – Mais do que receber carne humana para comer?
- Lógico. O monstro tinha direito sim a sol e chuva. Me pediram para que o centro do labirinto, onde fica o trono da criatura, fosse aberto aos céus.
- E o que ganhamos com isso? E por que você para a todo momento, se estamos seguindo a esmo?
Tal questionamento fez com que Dédalo estancasse, olhasse para seu filho com irritação e o desse um tapa na testa.
- Use o cérebro menino! Athena nos disse que a entrada não era a única saída e, logicamente, estava se referindo à única outra abertura no labirinto, o solarium por onde o Minotauro via o céu.
- Certo, mas o que isso tem a ver com o incenso?
- Pense por um instante. – sua irritação estava atingindo limites perigosos – Todo o ar nesse labirinto deveria ser quase que estático, mas, considerando a abertura, ele irá se mover. Veja como a fumaça do incenso se altera mais em um lado do corredor que no outro, isso quer dizer que o centro está mais perto da primeira posição.
Ícaro, para a tristeza de seu pai, abriu um sorriso de quem finge estar entendendo, mas não havia tempo a perder, precisavam chegar no centro antes que o filete aromático se esgotasse.
Não sabiam se tinham andado por poucas ou muitas horas, pois, com a correria, o incenso poderia ter queimado muito mais depressa, mas a fome e a sede eram tantas que deveria fazer mais de um dia que andavam, corriam, paravam e seguiam, quando a chama do bastonete de ervas se extinguiu.
Ícaro gritou de desespero, partindo o coração de Dédalo. Encontraram pequenos roedores mortos, mas sua carne já estava putrefata e impossível de ser ingerida, sem vomitar o pouco líquido que sobrara em seus corpos.
- O que vamos fazer? – Chorou o menino, dando provas de sua tenra idade pela primeira vez.
Seu pai o abraçou, não iria demonstrar, mas seu desespero estava ficando tão grande quanto o do jovem, e, partilhando do amor familiar, ficaram em silêncio. Ícaro, num instante, levantou a cabeça, os olhos brilhando.
- Está ouvindo isso? – Ficando em pé e colocando a mão, em concha, na orelha.
Dédalo se esforçou, mas apenas percebia o silêncio, sendo mais provável escutar seu próprio coração antes de qualquer outra coisa.
- Parece... um pássaro?! – E começou a correr, esperando que seu pai o alcançasse a cada curva.
Os ouvidos do garoto eram prodigiosos, pois, em pouco tempo, até o velho conseguiu começar a escutar a cantoria e, após poucas curvas, a escuridão começou a se desfazer, permeada por fachos vermelhos, característicos do pôr do sol.
Chegaram no centro do labirinto, em tempo de ver os inúmeros ninhos de pássaros, de cores e tamanhos variados, todos feitos ao redor da abertura no teto. Muitos deles voavam para dentro e pegavam qualquer coisa brilhante que encontravam ou restos de carne, no caso dos maiores.
- Use você o cérebro, pai, pois é melhor com ele. – Brincou Ícaro – Eu usarei o físico e minha juventude para vencermos as dificuldades. Começando pela comida.
O centro do labirinto era uma mistura terrível de sala do trono com altar de sacrifícios. Uma área ampla e circular, centrada no imenso trono de pedra cinza, como as paredes, assentado num pequeno platô, três degraus acima do nível do solo. Ossos roídos e restos humanos carcomidos estavam espalhados em todo o piso, misturado com restos de pequenas aves, aparentemente o alimento do Minotauro, entre sacrifícios.
No entanto, a visão do céu e o movimento do ar, permitidos pela abertura, somados aos cantos dos pássaros, deixavam aquele lugar mais agradável que qualquer um dos corredores, por mais repulsivo que seja tal pensamento, e tudo isso foi esquecido por Dédalo, quando seu filho chegou com uma pequena ave marrom, que capturara em pleno voo, ainda se debatendo, antes de ter seu pescoço quebrado.
- Não quero desperdiçar nenhuma gota do sangue. – Disse Ícaro, puxando a faca de sílex, fazendo um furo no pescoço do animal e, em respeito, dando para seu pai beber.
Em qualquer outra circunstância, beber sangue seria algo repugnante, mas, ali, naquele lugar, foi como se sorvesse o mais puro néctar dos deuses. Fizeram uma fogueira, com restos de tecidos e outras coisas que preferiram não identificar, e começaram a depenar as aves que encontraram, para espetá-las em ossos e assarem a carne.
Comiam em silêncio, não se permitindo parar de mastigar para proferir qualquer comentário, mas a mente do arquiteto estava novamente em Athena e em seu conselho. A única forma de sair dali, era pela abertura, mas apenas os pássaros podiam acessar tal passagem. Eles precisariam voar, precisariam sair daquele lugar como os pássaros faziam.
- Pai, o céu está estrelado e meu corpo está exausto, mas satisfeito com a refeição. Vou me deitar um pouco, tente o senhor também. – Aconselhou Ícaro, se deitando num local mais limpo, mas seu pai entrara novamente em seu transe de pensamentos e não havia o que fazer.
Os primeiros raios da manhã acordaram o jovem, que se levantou e olhou ao redor, buscando Dédalo. O encontrou dormindo próximo a uma das paredes, onde, com um pedaço de osso queimado, havia rabiscado uma infinidade de desenhos de pássaros, ou, pelo menos, era o que parecia, mas, olhando de perto, viu que eram homens com asas no lugar dos braços.
- Você é um gênio. – Murmurou baixinho, para não acordar o velho, e, antes de se afastar, percebeu uma pequena pilha de penas – Entendi, você precisa de material para as asas. – E começou a recolher toda penugem que encontrou.
Dédalo despertou com um leve toque em seu ombro. Ao se focarem, seus olhos mostraram o rosto sorridente do jovem.
- Veja! – Apontando uma enorme pilha de penas – entendi o que precisava, podemos construir as asas.
Mas o sorriso do menino encontrou apenas uma expressão séria em seu pai, que disse tristemente:
- Isso é ótimo, no entanto, por mais que eu tenha meditado boa parte da noite, não encontrei forma de manter todas as penas unidas, muito menos colá-las em nossos braços.
- Iremos dar um jeito. – Afirmou com confiança – Não desistiremos agora, voar é tudo o que eu sempre desejei, ganhar os céus e, agora, escapar daqui.
A crença ingênua do garoto deu ânimo ao velho, que se levantou e, juntos, começaram a revirar cada centímetro do salão, até que Ícaro, decidindo que não havia onde mais olhar, começou a remexer nos restos humanos e encontrou restos de hastes, feitas de um material maleável e amarelado. Na dúvida, questionou Dédalo:
- Pai, por que os sacrifícios carregavam velas? Se é que é isso que são essas coisas.
- Minos não permitia que usassem tochas, para não terem armas rústicas e lutarem contra o Minotauro, por isso lhes dava apenas uma comprida vela, para iluminar o caminho e, quem sabe, serem encontrados mais facilmente.
Ícaro, arrepiou com o pensamento de encarar tal monstro apenas com uma vela nas mão, e atirou o objeto por cima do ombro, o qual rolou até perto dos restos da fogueira e começou a derreter com o pouco calor remanescente. Dédalo, vendo a cena com o canto dos olhos, exclamou:
- Por Athena! Você encontrou a solução. Ícaro, recolha o máximo de velas que encontrar, podemos derreter a cera e usá-la para colar as penas.
Com entusiasmo, mais pela perspectiva de voar do que de escapar, o jovem correu recolhendo cada vestígio de vela que encontrava, enquanto seu pai, gerando faíscas com a faca de sílex sendo raspada em uma pedra, ascendeu o fogo e começou a derreter a cera dentro de um crânio.
O cheiro da carne queimada, mesclado com o da substância derretida, deveria ser insuportável, mas foi ignorado pela fúria cega com que Dédalo trabalhava. Após fundir o suficiente para ambos, chamou seu filho e começou a trabalhar colando uma infinidade de pequenas penas em seus braços e, uma vez cobertos, começou a cobrir as penas com mais penas, até que Ícaro possuísse um magnífico par de asas, deixando apenas suas mãos à mostra.
Em seguida, seguindo as instruções de Dédalo, o filho deu asas ao pai e se sentaram para descansar o corpo, antes da fuga.
Voar se mostrou mais simples do que parecia, Dédalo realmente era um gênio, abençoado por Athena, pois, em seus estudos das aves, reproduziu com perfeição toda a envergadura e posicionamento de cada pena, de modo que apenas deveriam bater os braços com vigor para sair do chão.
Como que num salto imponente, os dois saíram do labirinto e pousaram na parte externa do telhado, percebendo as reais dimensões do lugar.
- Seu trabalho é realmente terrível e magnífico. – Suspirou Ícaro, observando que, em todas as direções, a construção se estendia quase até o limite da visão, mas a brisa marinha indicaria para onde deveriam ir.
Fizeram uma prece a Athena, agradecendo sua bondade e suporte, e se prepararam para voar.
- Meu filho, devemos fugir do reino de Creta, pois aqui seremos sempre perseguidos. Marinheiros falam de uma ilha, poucas milhas mar a dentro, que está deserta, com exceção de um templo de Zeus. Como auxiliamos seu filho, Teseu, na sua aventura, acredito que seremos bem recebidos.
- Sim, meu pai. – Respondeu o menino, impaciente, já começando a bater os braços e sair do chão.
Logo estavam em voo e Ícaro não podia descrever o prazer e invencibilidade que sentia, subia e descia ao redor de seu pai, dando rasantes no teto do labirinto e gargalhando livremente. Dédalo se sentiu feliz em ver seu filho tão satisfeito e pediu apenas que parassem para descansar na borda da construção, antes de iniciar a travessia do mar.
- Ícaro. – Chamou o arquiteto, quando partiram novamente – Iremos voar sobre os domínios de Poseidon, por isso não chegue perto da água, onde ele poderá nos atingir com suas ondas.
- Não chegaria perto do chão, nunca mais, se pudesse. – Gritou o jovem, num rodopio gracioso.
- Até as águias precisam repousar suas asas. – Riu de volta, e, vendo a ilha despontando no horizonte, minutos depois, adicionou – Lá está a ilha. – então viu seu filho, alguns metros acima de si - O sol está a pino, em seu ponto mais quente, não vá muito alto, pois seus raios irão derreter a cera! Logo estaremos são e salvos.
- O sol? – olhando para cima e uma ideia cruzando sua mente – Essa é a minha chance de me encontrar com Apollo! – e começou a subir vertiginosamente.
- Não, meu filho! Volte! – Gritou desesperado.
- É minha única chance de desafiar seu carro solar para uma corrida. Quando chegarmos terei de me desfazer dessas maravilhosas asas.
E, não importando o que mais foi gritado e suplicado por Dédalo, Ícaro continuou subindo, cada vez mais, até que achou que estava começando a discernir os traços do deus, mas, Apollo, como qualquer outra divindade, não aceitaria ser desafiado por reles mortais e, com seu arco, lançou seus raios solares de calor.
Ícaro estava tão cego pela sensação de invencibilidade, que demorou para perceber que batia seus braços, apenas úmidos pela cera derretida e completamente desprovidos de penas, e que estava indo em direção à ilha, não ao sol.
Vendo tudo de longe, Dédalo voou em direção ao mar, tentando calcular onde seu filho cairia, para agarrá-lo, mas não foi rápido o suficiente e estava próximo apenas para escutar os gritos de socorro e desespero e o baque indescritível, quando o corpo jovem se chocou contra as ondas, à poucos metros da praia.
Em poucos instantes, o velho chegou na praia, no local onde o corpo de seu filho fora depositado pelo mar e chorou abertamente, aos berros de dor, pela perda. O rosto do jovem, no último instante se tornou tranquilo, como se aceitasse seu destino, mas isso de nada ajudou a consolar Dédalo. Então, uma voz surgiu das profundezas.
- Sua dívida está paga. – Ecoou Poseidon – Sua sabedoria é realmente singular, assim como foi seu sacrifício. Toda a humanidade deverá lembrar quem foi e como não se deve desafiar os deuses.
- Não peço que lembrem de mim. – Soluçou o arquiteto – Faça com que lembrem de meu filho, pois sua coragem e alegria não possuem par. Assim como seu desejo de encontrar um deus.
- Muito bem. Enterre seu menino nas areias dessa praia, pois essa será a ilha Icária e seu nome nunca será substituído.
Dédalo enterrou seu filho na ilha, que é chamada assim até os dias de hoje, construiu um altar para Athena e outro para Poseidon e passou os restos de seus dias cultuando, em conjunto com Zeus, os três deuses que ditaram seu destino.
Até que, no final de sua existência, Athena apareceu em sua forma mundana de guerreira e conduziu, pessoalmente, a alma de um dos maiores sábios da história antiga para os Campos Elísios, onde Dédalo, finalmente, reencontrou sua paz.

Saudações mitológicas e até a próxima!

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